Ele era um homem que raramente sorria.
Então algo espantoso aconteceu.
December 3, 2014 By Austen Ivereigh

Pope Francis gives his thumb up as he leaves at the end of his weekly general audience in St. Peter’s square at the Vatican, Wednesday, Sept. 4, 2013. (AP Photo/Riccardo De Luca)
Em junho de 2013, alguns meses depois da surpresa de sua eleição, nos encontramos apenas por um minuto e, embora mantivesse a mão no meu braço o tempo todo, ele não falou. Minha mulher acha que foi porque não o deixei abrir a boca.
Mas o líder mundial de 1,2 bilhão de católicos não costuma falar muito se não tiver nada específico a dizer; de qualquer modo, ele estava exausto.
A respiração era difícil – ele quase morreu numa cirurgia de pulmão aos 21 anos – e havia suor em sua testa. Era um homem de 76 anos que acabara de passar duas horas debaixo do sol na Praça de São Pedro cumprimentando e abraçando o santo povo fiel de Deus, como ele diz. De vez em quando – como na ocasião em que beijou o homem horrivelmente desfigurado pela neurofibromatose –, a imagem é tão terna que os jornais a publicam na primeira página, o que não é assim tão comum com papas. A questão é que, hoje, quem tem entrada para a primeira fila das audiências de quarta-feira, como eu, fica por último. Não somos o foco do papa Francisco. São os deficientes, os doentes, os idosos e os sem-teto que ele põe em primeiro lugar, como no Evangelho. No entanto, ele estava totalmente presente durante aquele minuto, escutando com atenção cada palavra minha em espanhol. E isso bastou para entender o que diz quem o conhece: essa coisa, essa qualidade que ele transmite. Justin Welby, arcebispo de Canterbury, a definiu muito bem quando o encontrou alguns dias depois de mim. O papa, disse ele, era “a humanidade em chamas”. É isso. Se a alegria fosse uma chama, seria preciso ser de amianto para não ser queimado pelo papa Francisco.
Em Buenos Aires, cidade natal do papa, essa alegria espanta até quem o conhece melhor. Sim, seu sorriso sempre foi encantador, mas não apareceu muito durante seus 12 anos como cardeal. Ele não gostava de câmeras, dificilmente dava entrevistas e era famoso pela austeridade e pela timidez. Ninguém o encontraria num jantar festivo e, embora favelados, prostitutas e grupos contrários ao tráfico de drogas o conhecessem bem, ele entrava e saía do ônibus e do metrô sem ser reconhecido. Suas palavras eram sempre elegantes e acertavam o alvo, mas ele as proferia em voz baixa. Agora, olhem só como ele está, dizem em Buenos Aires. Não dá para acreditar. Alegre como um dia na praia.
Eis o que aconteceu. Não é segredo, porque ele revelou a várias pessoas, inclusive ao pastor evangélico de Buenos Aires que me contou; mas poucos sabem. Na noite de sua eleição, em 13 de março de 2013, sob os grandes afrescos de Michelangelo na Capela Sistina, os votos dos cardeais foram favoráveis a ele, passando dos 77 necessários, e lhe perguntaram se aceitava o cargo. “Aceito”, disse, “embora eu seja um grande pecador.” À pergunta seguinte, respondeu que adotaria o nome de Francisco em homenagem ao santo pobre de Assis. Tudo foi feito com muita confiança, sem um momento de dúvida, porque ele sabia que agora seria essa sua tarefa, sua missão. Mas, depois de vestir a batina branca papal e começar a atravessar o longo corredor rumo ao balcão da loggia da Catedral de São Pedro para se mostrar ao mundo, ele foi de súbito invadido por tristeza e dúvidas. Por sorte, seu antecessor, Bento XVI, modificara os procedimentos para permitir que o novo papa rezasse na Capela Paulina antes de sair ao balcão. Lá, com o amigo brasileiro, cardeal Cláudio Hummes, ajoelhado a seu lado, Jorge Mario Bergoglio teve uma experiência de luz e liberdade que expulsou os sentimentos obscuros e nunca mais o abandonou. O diretor da TV Vaticano, que seguia o papa com uma câmera, confirmou a história. O monsenhor Dario Viganò disse que, quando o papa Francisco entrou na capela, parecia levar nos ombros todo o peso do mundo, mas, quando saiu, era um homem diferente, como é agora. “É a graça do cargo”, diz o papa Francisco aos amigos argentinos que lhe perguntam por que mudou.
Naquela noite, como comentarista do canal de TV britânico Sky News, eu estava no telhado de um convento que dava para a praça. Ficaria tão desnorteado quanto os outros especialistas que não tinham o cardeal Bergoglio na lista não fosse a dica de um cardeal velho demais para votar que o vira surgir como papável nas reuniões de cardeais antes do conclave. “Se for um conclave curto”, foi a mensagem que me chegou, “talvez seja Bergoglio.” E tive poucos minutos para preparar algumas informações (jesuíta de 76 anos, dedicado aos pobres, segundo lugar em conclaves anteriores, esse tipo de detalhes), mas ao mesmo tempo não parava de pensar: Uau! Elegeram um argentino! Eu conhecia seu país. Há vinte anos, morei em Buenos Aires para pesquisar uma tese sobre Igreja e política. Aprendi a amar aquela cidade cativante e irritante, seu povo e seus ritmos, a cultura, a história e a música; com o tempo, meu espanhol adotou sotaques locais e expressões pitorescas. Jorge Mario Bergoglio, mais que argentino, é portenho, da cidade portuária de Buenos Aires; toma chimarrão numa cuia com bomba de metal e é louco pelo impetuoso San Lorenzo, seu time de futebol. Adora tangos e milongas, e os poemas nostálgicos de vaqueiros do século 19. Quando era ativo na ordem jesuíta, deu aulas durante dois anos no ensino médio e levou o grande contista Jorge Luis Borges para falar às crianças sobre poesia gauchesca. Preciso continuar? O papa é tão portenho quanto um casal que desliza ao som do bandoneón pela Avenida Corrientes.
Assim, senti uma estranha ligação com a sorridente figura de branco que apareceu no balcão naquela noite de Roma refrescada pela chuva, que baixou a cabeça e pediu orações. Na manhã seguinte essa sensação só aumentou quando observei a mensagem que ele mandou ao vivo para casa, para o povo diante da catedral na Praça de Maio. No balcão, falara em italiano com sotaque; mas agora saía o portenho cantado e coloquial – pense num papa que fale com o sotaque de sua cidade e terá uma ideia. Sua mensagem pedia que cuidassem uns dos outros, que não tratassem os semelhantes de forma errada. Mas ele usou uma expressão coloquial – “não arranque o couro de ninguém” – proveniente da época anterior à refrigeração em que os gaúchos esfolavam o gado abatido e abandonavam a carcaça. Soava estranho um papa falando assim. E, a cada dia, enquanto ele encantava o mundo, eu ficava mais e mais ansioso para conhecer seu passado. Então veio aquele minuto de contato em junho. Em outubro de 2013, armado com o contrato de um livro, voltei a Buenos Aires e passei semanas entrevistando quem o conhecia: os jesuítas, os padres das paróquias e os bispos; os rabinos, imãs e pastores; os filósofos e os políticos, os migrantes que moravam em favelas e os veteranos de guerra. Cheguei a cortar o cabelo na mesma barbearia que ele frequentava. Às vezes, ao pegar a linha A do metrô – que costumava levá-lo da Praça de Maio, onde morava nas instalações diocesanas, ao seu bairro natal de Flores –, imaginei-o sentado à minha frente, a cabeça inclinada enquanto escutava as esperanças ou angústias de alguém.
As entrevistas mais comoventes foram com quem o conhecia bem, pessoas que se despediram dele no início de 2013. Ele as tranquilizara e dissera, rindo, que não havia risco, que era velho demais, que voltaria para a Páscoa. E nunca voltou. Mas não morreu nem sumiu. Estava em bilhões de telas de TV, de branco. É um tipo estranho de pesar: seu amigo, seu pai espiritual, vai a Roma eleger o papa e acaba eleito. Alicia, advogada amiga dele, estava num bar ao receber a notícia inesperada e caiu em lágrimas. “Ele é meu amigo”, disse a todos, à guisa de explicação. Há duas chaves para entender o papa Francisco. Uma é que só se erradica a pobreza amando os pobres. A outra é que não se pode amar os pobres apegado às coisas – nossos planos, nossas ideias – e que, quando nos desapegamos, deixamos que Deus seja Deus. Era o que ele mostrava na praça naquele dia. Por isso não precisou dizer muito. E também por isso não precisei de mais de um minuto com ele para ser inflamado.
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